Relatórios técnicos elaborados por pesquisadores da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) asseguraram o direito à moradia de aproximadamente 85 famílias residentes na comunidade Arroio Dourado, em Foz do Iguaçu. Os estudos foram desenvolvidos no âmbito de dois projetos de extensão, a pedido do Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (NUFURB), da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR).A comunidade, instalada sobre uma gleba de propriedade do município, onde havia um depósito de lixo, estava sob risco de remoção em decorrência de uma ação judicial movida pelo Ministério Público, baseada em um relatório técnico anterior que apontava a possível emissão de gases tóxicos. As análises conduzidas pela equipe da UNILA, contudo, descartaram a existência de riscos ambientais que justificassem a retirada das famílias, fundamentando tecnicamente a defesa apresentada pela Defensoria Pública e contribuindo para a permanência dos moradores no local.
“A participação da UNILA [na resolução do problema] foi muito, muito, muito importante”, disse, em tom de gratidão, Marcírio de Oliveira Martins, presidente da Associação de Moradores do Arroio Dourado. Segundo ele, a comunidade começou a ser formada há cerca de quatro décadas, após a desativação de um “lixão” existente na região Sul da cidade. Desde então, quase nenhuma infraestrutura pública foi executada naquele espaço pelo poder público. Houve apenas a colocação de energia elétrica e a perfuração de um poço, “que sustenta as mais de 80 famílias daqui”, complementou.
Em 2012, já com uma comunidade constituída, houve o ingresso de uma ação por parte do Ministério Público. Com base no laudo que apontava a existência de gases no subsolo, o MP solicitou à Justiça que determinasse a realocação das famílias – que deveria ser executada pela Prefeitura de Foz do Iguaçu. Ciente do processo, a Defensoria Pública resolveu atuar no caso, representando as famílias mesmo antes de ser intimada. “Essa decisão [determinando a realocação] era muito antiga e não foi cumprida”, explicou o defensor público coordenador do NUFURB, João Victor Rozatti Longh.
Conforme Longh, a UNILA surgiu em um contexto posterior às visitas ao local, em companhia do MP, em que foram ouvidos os moradores, que defendiam não haver risco, já que até mesmo plantavam e colhiam no local. Porém, havia o temor da Defensoria de que até mesmo alimentos colhidos e consumidos pelos moradores pudessem também estar contaminados. “Por isso, precisávamos resolver a questão urgentemente”, complementou. A solução foi procurar os pesquisadores da UNILA, que “aceitaram colaborar voluntariamente para realizar medições e constatar se o que estava no laudo original – produzido por uma empresa da Prefeitura – seria correto e adequadamente fundamentado”.
A participação da UNILA se deu por meio do projeto de extensão ATHIS Planejamento – Assessoria Técnica Multidisciplinar para Planejamento Comunitário, a partir de 2024. Criado no âmbito da extensão, a partir dos integrantes do grupo de pesquisa TIPPA – Territórios Interioranos, Paisagem e Povos na América Latina, como uma proposta de atuação em Assessoria Técnica em Habitação de Interesse Social, focada em planejamento comunitário e autogestão, o projeto tem como premissa o direito de que famílias e comunidades de baixa renda possam contar com assessoria técnica em Arquitetura e Urbanismo e Engenharia.
Os pesquisadores analisaram a história da ocupação, as formas de morar e as condições ambientais da área. “Para a pesquisa histórica da ocupação e uso da gleba, buscamos dados em entrevistas com moradores antigos e pioneiros; executamos um levantamento em campo sobre as formas de morar das famílias e sua conexão com o território; buscamos informações diversas em outros trabalhos acadêmicos já desenvolvidos na área, e também em material jornalístico de época”, resume a coordenadora da ATHIS, Patricia Zandonade.
Docente do curso de Arquitetura e Urbanismo, ela conta que, para analisar a condição ambiental, foram utilizadas como fonte outras pesquisas acadêmicas da UNILA sobre medição da qualidade da água e do nível de poluição do solo do Arroio Dourado e da bacia hidrográfica que banha a região.
Em parceria com o projeto de extensão ATHIS, somaram-se as análises do grupo de pesquisa Mobilidade e Matriz Energética. Coordenado por Ricardo Hartmann e Maicon Evaldt Coelho, o grupo procedeu às medições de gases no solo em nove pontos da comunidade, utilizando um analisador portátil de metano, dióxido de carbono, oxigênio e nitrogênio. “Fizemos a medição e verificamos que as emissões de metano estão bem abaixo do limite mínimo de segurança e não há risco de ignição, tampouco de propagação de chama”, explicou.
Diante dos resultados, o relatório técnico elaborado pela ATHIS apresentou cinco recomendações às autoridades. Entre elas, a manutenção das famílias no local e o cadastramento urgente daquelas que historicamente ocupavam o Arroio Dourado, “dada a pressão imobiliária que a área vem sofrendo”, contextualiza Patricia Zandonade. Com base nisso, a Justiça determinou à Prefeitura que fizesse o cadastramento dos moradores, por meio do Instituto de Habitação de Foz do Iguaçu – FozHabita, assegurando a posse. “Finalmente, a Justiça sentenciou a manutenção da posse para estas famílias cadastradas que historicamente ocupam a área sul da gleba”, complementa a docente. A decisão foi homologada por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em que o município se compromete a regularizar as moradias das famílias cadastradas.
Em outros termos, “a comunidade do Arroio Dourado não só vai continuar, como vai permanecer no local, que vai ser objeto de uma regularização fundiária”, comemora o defensor público João Victor Rozatti Longh, que considera que “havia um interesse político de retirar as pessoas do local”, o que foi revertido com a participação da UNILA: “Do ponto de vista do NUFURB, essa é uma história bonita”, encerra.
A participação da UNILA em ações que defendem o direito à moradia se confunde com a história da própria Universidade. Uma dessas frentes é capitaneada pelo grupo de pesquisa Territórios Interioranos, Paisagens e Povos na América Latina (TIPPA), no qual o projeto de extensão ATHIS está inserido. As iniciativas ocorrem desde 2015, com o projeto Cirandas Urbanas, na comunidade do Jardim Almada. No mesmo período, lembra Patricia Zandonade, iniciou-se o projeto Escola Popular de Planejamento da Cidade, coordenado pela professora Cecília Angileli.
Entre as ações que garantiram a permanência das pessoas em suas moradias, destacam-se também as desenvolvidas pelos projetos de pesquisa “Observatório de Remoções” e de extensão “Reestruturação Urbana e Social da Fronteira”, em 2015. À época, um processo de reintegração de posse, que implicaria na realocação de milhares de famílias da Ocupação do Bubas – localizada no Porto Meira, bairro da zona sul de Foz do Iguaçu foi suspenso justamente pela ação dos pesquisadores do projeto Escola Popular de Planejamento da Cidade. “Estes projetos vêm sendo desenvolvidos em algumas comunidades, em especial aquelas em risco de remoção forçada, ou em vulnerabilidade de acesso à terra”, comenta Patricia Zandonade, que destaca ainda a parceria com o NUFURB nas iniciativas.
Além da garantia do direito à moradia, os projetos visam ainda a preservar os modos de viver dessas populações. No caso do Arroio Dourado, por exemplo, a docente ressalta “a importância de um processo de regularização que respeite as formas de morar das famílias, que apesar de estarem dentro do perímetro urbano, são ligadas a formas camponesas de morar”.
Outro foco é promover condições dignas aos moradores, como o desenvolvimento de ações de engenharia, como acesso à energia elétrica e à água e esgoto, pelo grupo de pesquisa Mobilidade e Matriz Energética.
Natural de Foz do Iguaçu, o coordenador do grupo, Ricardo Hartmann, avalia que todas essas iniciativas representam o cumprimento de uma das funções da universidade pública: retribuir à sociedade o investimento feito na instituição. “É muito gratificante poder contribuir com a melhoria da questão fundiária, que é muito importante nesse momento. A cidade vive um momento de transformação e a participação da UNILA como instituição e principalmente como instituição criadora de conhecimento pode ajudar muito nesse momento”.