Dia 23 de agosto é lembrado pelo nascimento de um dos maiores escritores brasileiros. Como se não bastasse ter sido, contista, cronista e romancista, foi dramaturgo e jornalista. Um ser produtivo, no mundo das letras, múltiplo e inquieto.
Nelson Falcão Rodrigues, pernambucano arretado, que escrevia magistralmente foi sem dúvida alguma áspero, provocador e altamente irônico ao entregar para o mundo as suas histórias da vida como ela era e como nunca deixou de ser. Ainda atual, me pego pensando o que deve ter sido ler Nelson Rodrigues na sua época.
Em sua homenagem, me atrevi a escrever um pequeno texto, em primeira pessoa, como se fosse o próprio Nelson narrando seu último conto. Um prólogo.
Então, sem mais delongas, vamos lá.
Eu sempre disse que a VIDA COMO ELA É não perdoa ninguém. Nem menos a mim.
Nasci em Recife, no final do mês de agosto. Desgostos anunciados. Ainda criança fui para o Rio de Janeiro. Lá aprendi a ouvir o coração pulsando nas vielas, nos becos, nos bares. Cresci em meio a jornais e tipografias, vendo meu pai, Mário Rodrigues, transformar tinta em notícia. Era um ofício que parecia simples, mas que escondia muito do drama humano em cada linha. Me identifiquei e muito cedo compreendi que por trás de cada manchete havia uma vida inteira, cheia de vícios e desejos.
Minha juventude não foi doce. Vi meu irmão ser assassinado numa redação, uma cena que nunca me deixou. Tá impressa na minha alma. Também conheci a doença e o luto, que vinham visitar minha casa como hóspedes que nunca iam embora. Mas se havia tragédia, havia também uma certa beleza: porque tudo o que é humano, mesmo a dor, pode ser escrito. Não precisei inventar nada: a realidade já era uma peça de teatro pronta, apenas esperando alguém que tivesse coragem de escrevê-la. E eu, teimoso, escrevi.
Fiz do palco meu confessionário. Descortinei o inconsciente, a luxúria, a febre. Em cada tragédia carioca que escrevi, o que me interessava não era a moral, mas a queda. Porque, sim, todos caem. A família é o túmulo das ilusões, um pequeno abismo onde se misturam amor e rancor, desejo e silêncio. E a sociedade — ah, a sociedade! — não passa de uma grande representação em que todos usam máscaras, mas no fim todos tropeçam, mostrando a cara.
Fui chamado de imoral, reacionário, pornográfico. Mas sempre respondi: imorais são os que fingem pureza. Eu prezei pela autenticidade e apenas dei voz às paixões escondidas e aos desejos inconfessáveis. Eu só escrevi o que todos vivem, ainda que em segredo, ainda que em pensamento. A hipocrisia, sim, é que deveria causar escândalo.
Agora, aqui, volto ao princípio: não escrevi para agradar, escrevi para desmascarar, para revelar. Porque viver é sempre um escândalo e a vida, escancarada como ela é, nunca se contenta com vernizes ou pequenos retoques feitos com maquiagem vencida. Ela exige que se mostre a face nua — mesmo quando dói, mesmo quando choca. A cada silêncio, um crime. Um ato. Um fato. Um escarcéu.
Se algum legado deixo, é este: o ser humano é feito de contradições, e justamente nelas mora a beleza. Somos frágeis, somos culpados, mas somos intensamente vivos.
Eu sou Nelson Rodrigues. E este é o começo do meu último conto: um retrato em carne viva daquilo que sempre fomos — humanos demais para fingir pureza, humanos demais para não amar.
O Óbvio ululante das confissões que me atrevi a fazer.
Por Estella Parisotto Lucas