Rachel de Queiroz
Você sabia que Rachel de Queiroz foi a primeira escritora brasileira a fazer parte da Academia Brasileira de Letras – ABL? E foram necessários oitenta anos desde a fundação da associação das letras (1897) até a admissão da escritora para ocupar uma das 40 cadeiras, em 1977.
Hoje compartilho com vocês um pouco da vida e da obra desta que foi uma das maiores cronistas da Literatura Brasileira.
A Velha Amiga
“Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.
Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.
Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.
A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.
Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.
Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.
Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade – mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.
Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo – e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.
Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.
A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.
E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.
Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.”
(Crônica publicada no jornal “O Estado de São Paulo” – 13/01/2001)
Biografia
“Quinta ocupante da Cadeira 5, eleita em 4 de agosto de 1977, na sucessão de Candido Motta Filho e recebida pelo Acadêmico Adonias Filho em 4 de novembro de 1977.
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 4 de novembro de 2003. Filha de Daniel de Queirós e de Clotilde Franklin de Queirós, descende, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar, parente portanto do autor ilustre de O Guarani, e, pelo lado paterno, dos Queirós, família de raízes profundamente lançadas no Quixadá e Beberibe.
Em 1917, veio para o Rio de Janeiro, em companhia dos pais que procuravam, nessa migração, fugir dos horrores da terrível seca de 1915, que mais tarde a romancista iria aproveitar como tema de O Quinze, seu livro de estréia. No Rio, a família Queirós pouco se demorou, viajando logo a seguir para Belém do Pará, onde residiu por dois anos.
Em 1919, regressou a Fortaleza e, em 1921, matriculou-se no Colégio da Imaculada Conceição, onde fez o curso normal, diplomando-se em 1925, aos 15 anos de idade.
Estreou em 1927, com o pseudônimo de Rita de Queirós, publicando trabalho no jornal O Ceará, de que se tornou afinal redatora efetiva. Em fins de 1930, publicou o romance O Quinze, que teve inesperada e funda repercussão no Rio de em São Paulo. Com vinte anos apenas, projetava-se na vida literária do país, agitando a bandeira do romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca.
O livro, editado às expensas da autora, apareceu em modesta edição de mil exemplares, impresso no Estabelecimento Gráfico Urânia, de Fortaleza. Recebeu crítica de Augusto Frederico Schmidt, Graça Aranha, Agripino Grieco e Gastão Gruls. A consagração veio com o Prêmio da Fundação Graça Aranha.
Em 1932, publicou um novo romance, intitulado João Miguel, e em 1937, retornou com Caminho de pedras. Dois anos depois, conquistou o prêmio da Sociedade Felipe de Oliveira, com o romance As três Marias. Em 1950, publicou em folhetins, na revista O Cruzeiro, o romance O galo de ouro.
Cronista emérita, publicou mais de duas mil crônicas, cuja seleta propiciou a edição dos seguintes livros: A donzela e a Moura Torta, 100 crônicas escolhidas, O brasileiro perplexo e O caçador de tatu. No Rio, onde passou a residir em 1939, colaborou no Diário de Notícias, em O Cruzeiro e em O Jornal. Escreveu duas peças de teatro, Lampião, em 1953, e A Beata Maria do Egito, de 1958, laureada com o prêmio de teatro do Instituto Nacional do Livro, além de O padrezinho santo, peça que escreveu para a televisão, ainda inédita em livro. No campo da literatura infantil, escreveu o livro O menino mágico, a pedido de Lúcia Benedetti. O livro surgiu, entretanto, das histórias que inventava para os netos. Dentre as suas atividades, destacavam-se também a de tradutora, com cerca de quarenta volumes vertidos para o português.
Foi membro do Conselho Federal de Cultura, desde a sua fundação, em 1967, até sua extinção, em 1989. Participou da 21ª Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 1966, onde serviu como delegada do Brasil, trabalhando especialmente na Comissão dos Direitos do Homem. Em 1988, iniciou sua colaboração semanal no jornal O Estado de São Paulo e no Diário de Pernambuco.
Recebeu o Prêmio Nacional de Literatura de Brasília para conjunto de obra em 1980; o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, em 1981; a Medalha Mascarenhas de Morais, em solenidade realizada no Clube Militar (1983); a Medalha Rio Branco, do Itamarati (1985); a Medalha do Mérito Militar no grau de Grande Comendador (1986); a Medalha da Inconfidência do Governo de Minas Gerais (1989); O Prêmio Luís de Camões (1993); o Prêmio Moinho Santista, na categoria de romance (1996); o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2000). Em 2000, foi eleita para o elenco dos “20 Brasileiros empreendedores do Século XX”, em pesquisa realizada pela PPE (Personalidades Patrióticas Empreendedoras).”
(Atualizado em 12/09/2017. Publicada no site da ABL)